“Vinde a mim as crianças, pois delas são o reino de Deus”

Cleiton
10 min readOct 13, 2015

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O pastor, a santa e as crianças, vinte anos depois

A quinta-feira 12 de outubro de 1995 era pra ser só mais um feriado Dia das Crianças / Nossa Senhora de Aparecida como outros. Programação na TV focada no público infantil, estatísticas sobre congestionamentos e acidentes de trânsito no feriado, além reportagens sobre a fé dos (católicos) brasileiros em Nossa Senhora de Aparecida e Nossa Senhora de Nazaré. Tudo seguiria o script de sempre, não fosse por um detalhe acontecido no começo do dia:

“Nós estamos mostrando às pessoas que isso aqui não funciona, isso aqui não é santo coisa nenhuma! 500 reais — 5 salários mínimos — custa no supermercado essa imagem, e tem gente que compra! Agora se você quiser uma santa mais barata, você encontra até por 100. Será que Deus, o Criador do universo, pode ser comparado a um boneco desse, tão feio, tão horrível, tão desgraçado?” — Bispo Sérgio Von Helder, pastor da Igreja Universal do Reino de Deus, durante o programa O Despertar da Fé, exibido na manhã de 12 de outubro de 1995 na Rede Record.

Ao criticar — verbalmente e fisicamente — os santos e suas representações físicas, Von Helder blasfemou contra a fé dos católicos e provocou reações dos mais diferentes setores da sociedade brasileira, levando a debates que durariam meses e que acabaram em nada. Vale lembrar, porém, o cenário antes da ação de Von Helder.

Edir Macedo, bispo fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, comprara a TV Record dos grupos Silvio Santos e Paulo Machado de Carvalho no final de 1989, que virou Rede Record em julho de 1990. Com Macedo no controle, a emissora voltou a crescer, chegou em 1992 ao Rio de Janeiro e conseguiu a outorga de concessão pública do então presidente Fernando Collor, em uma ação que muitos dizem ser de retaliação contra a Rede Globo, que vinha, juntamente com outros grupos de comunicação, denunciando irregularidades políticas atribuídas a ele.

No mesmo ano de 1992, Macedo foi preso após um culto na catedral da Universal em Santo Amaro, acusado de charlatanismo, estelionato e curandeirismo. Macedo teve como advogados Campos Machado, atual presidente estadual do PDT, e o ex-Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos. Após 11 dias preso e inúmeras manifestações públicas de populares, religiosos, políticos como Lula e Aloysio Nunes Ferreira e até mesmo de Pelé, Macedo foi solto.

Von Helder entrou na Universal em 1988 e subiu rapidamente na liderança da igreja. Antes do ‘chute na santa’, ele já tinha chamado Padre Cícero de ‘padreco’ em Fortaleza, além de incentivar fiéis a quebrarem estátuas do santo popular. Em 1994, insinuou que o então candidato à presidência Lula era o diabo em pessoa.

A Rede Record vinha crescendo e, em 05 setembro de 1995, a Rede Globo estreia uma minissérie original escrita por Dias Gomes que causou muita polêmica:

Além de revisitar a história política, familiar e religiosa do Brasil entre 1970 e 1992 (ano da inauguração da Record Rio, da prisão de Macedo e do impeachment de Collor), “Decadência” tinha como personagem principal Mariel, interpretado por Edson Celulari, um pastor evangélico que enriqueceu de forma ilícita. A obra de ficção misturava acontecimentos reais e, no caso do personagem de Celulari, chegava a citar declarações literais de Edir Macedo. Dias Gomes já era conhecido por trabalhar em temas delicados, como em “O Pagador de Promessas”, “Roque Santeiro”, “O Espigão” e “Mandala”. Já sabendo da polêmica, a minissérie começa com a seguinte declaração:

Apesar da bela fala, o clima já era de guerra, como mostra esta declaração de Celulari publicada dias antes da estreia da minisérie:

“Quero que ‘Decadência’ provoque discussões sobre o fanatismo, sobre uma religião que surge imediatista, cheia de promessas e de uma maneira um pouco duvidosa.
[…]
Hoje você tem no Congresso uma bancada imensa de pastores. Eles têm rádio, TV, jornal. Tudo bem, as pessoas têm o direito de se expressar, mas quando isso passa a ser radical e fanático torna-se desmedido. Nós estamos expostos a esse tipo de fanatismo desmedido.”
— Edson Celulari, em entrevista para Mariana Scalzo, Folha de São Paulo, caderno TV Folha, 03 de setembro de 1995

A Rede Record também partiu para o ataque (ou seria contra-ataque?) em programas como 25ª Hora, que no dia 04 de setembro de 1995 fez um programa especial cheio de denúncias contra as Organizações Globo:

O clima entre Macedo-Universal-Record e Marinho-Globo, que desde o começo dos anos 90 só esquentava, atingiu seu ápice durante ‘Decadência’…

… e principalmente após.

A reação contra o “chute na santa” de Sérgio Von Helder foi imediata. No mesmo dia, o Jornal Nacional noticiou o fato, levando o chute, que ocorrera na madrugada da Rede Record, para o horário nobre da Rede Globo.

Dali em diante, tudo tomou proporções enormes: jornais publicavam editoriais e cartas condenando Von Helder, a Universal e a Record, queixas na polícia e na Justiça foram abertas, igrejas — católicas e evangélicas — eram depredadas, religiosos das mais diferentes denominações protestavam e davam suas opiniões e a imprensa repetia a imagem à exaustão.

Três dias depois, no dia 15 de outubro de 1995, Macedo pediu perdão aos católicos pela atitude de Von Helder em pronunciamento por telefone transmitido pela Rede Record. Pouco antes, no mesmo dia, Marco Maciel, presidente interino, afirmou deplorar a intolerância e o ocorrido. A ação de Macedo, que buscava diminuir a agitação popular dentro e fora da Universal, surtiu pouco efeito.

Von Helder saiu da direção da Universal e, assim como o pastor Ronaldo Didini, que comandava o 25ª Hora, foi para “missões no exterior” no dia 17 de outubro. Mesmo assim, o Ministério Público abriu inquérito contra Von Helder, que disse que não pediria desculpas, ato apoiado pelo pastor Didini. Ambos foram indiciados por agressão a objeto de culto religioso em um DP de São Paulo. O então deputado estadual Afansio Jazadji, na época no PFL, encaminhou ao Ministério Público pedido de prisão preventiva de ambos, além de Macedo, e solicitou exames de sanidade mental dos três.

Mais de 150 mil romeiros foram para Aparecida do Norte, além de lotarem paróquias em todo o Brasil em missas de desagravo. Dom Eugênio Sales, arcebispo do Rio, culpou o governo pela agressão, lembrando que a Rede Record é uma concessão pública. Ao mesmo tempo, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil aproveitou a oportunidade para fortalecer a Rede Vida, emissora sem vínculos oficiais com a Igreja Católica, mas pertencente ao Instituto Brasileiro de Comunicação Cristã. No dia 25 de outubro, D. Lucas Moreira Neves, presidente da CNBB, encontrou-se com FHC e rejeitou um convite oficial de participar, juntamente de D. Paulo Evaristo Arns, Cardeal de São Paulo, de um programa da Rede Record.
Deputados e senadores católicos de vários partidos também se articularam para criar um bloco de oposição à bancada evangélica.

A ‘guerra santa’ continuava, ganhando capas das revistas semanais do Brasil e cadernos especiais em jornais, e ganharia novos capítulos.

No começo de dezembro de 95, Macedo foi novamente capa da Veja, mas desta vez por conta de uma longa entrevista que concedeu para a revista semanal.

Semanas depois, Roberto Carlos cantou “Nossa Senhora”, música lançada em 1993, em seu especial de fim de ano, que foi ao ar quatro dias antes do Natal. No dia seguinte ao especial, a Rede Globo exibiu, no último bloco do Jornal Nacional, uma matéria de quase 10 minutos contra Macedo e os pastores da Universal, mostrando imagens exclusivas obtidas com Carlos Magno de Miranda, um ex-dirigente da igreja.

Ao invés do “boa noite”, o jornal acabou com um “até amanhã”. Dias depois, mais uma vez o programa 25ª Hora foi utilizado para criticar a Rede Globo. O período do Natal, data cristã simbolizando o nascimento de Jesus, foi envolvido por discussões e acusações intermináveis.

Investigações na Receita e Justiça foram abertas contra Macedo, que rebateu dizendo que estava sendo vítima de perseguições das Organizações Globo. D. Paulo Evaristo se manifestou dizendo que “não queremos julgar ninguém, mas achamos que o Brasil deve julgar”.

O ex-dirigente Carlos Magno disse que Romeu Tuma, então diretor da PF, a Receita e Collor “acobertaram” ações de Macedo. Magno também acusou Macedo de comprar uma mansão do ex-governador de São Paulo José Maria Marin por US$1,2 milhão, além de ter recebido dinheiro de um nacotraficante colombiano para conseguir comprar a TV Record. Enquanto isso, líderes da Universal cobravam apoio de FHC em rede nacional, que participou de reuniões, juntamente de José Serra e Mário Covas, com líderes da igreja.

As acusações agora sobravam para religiosos, empresários e políticos e só foi acalmada no começo de janeiro de 1996, depois da intervenção do Ministro das Comunicações Sérgio Motta, que ameaçou punir as redes Globo e Record. Ao mesmo tempo, D. Lucas Moreira Neves, presidente da CNBB, começou a se focar em conseguir uma vaga na Academia Brasileira de Letras, fato que alcançou no meio do ano. A tensão diminuía, mas os acontecimentos que para muitos começaram com o “chute da santa” são refletidos até hoje nos mais diversos setores da sociedade brasileira.

Sérgio Von Helder seria notícia novamente em 2004, após a revista Istoé desmentir boatos de que ele teria se convertido ao catolicismo, e chegou a ganhar uma música sertaneja contando a conversão. Foi condenado a dois anos e dois meses de prisão em 1997, mas acabou pagando apenas uma pequena multa em 2009. Hoje em dia, Helder mora no Brasil e lidera as filiais brasileiras da Igreja da Restauração.

Edir Macedo continuou no comando da Igreja Universal do Reino de Deus e da Rede Record. Lançou, em 2007, o livro “O Bispo: A História Revelada de Edir Macedo”, e em 2012 o primeiro livro da trilogia “Nada a Perder” — ambos contando sua vida, incluindo as desavenças com a Rede Globo. Em 2014, inaugurou o Templo de Salomão, sede mundial da IURD e maior espaço religioso do Brasil, ao custo de R$ 680 milhões, com a presença de Dilma Rousseff, Michel Temer, Geraldo Alckmin, Fernando Haddad, entre outros políticos; o ministro do STF Marco Aurélio Mello; o diretor da PF, Leandro Daiello Coimbra; o cônsul-geral de Israel, Yoel Barnea; empresários e presidentes das emissoras Band, SBT e Rede TV!. Em 2015, Macedo fez uma mea culpa sobre o “chute na santa” para o Conexão Repórter, do SBT. Meses depois, Silvio Santos visitou Edir Macedo no Templo de Salomão.

A bancada evangélica na Câmara dos Deputados, que em 1995 era composta por 24 parlamentares, atualmente possui 75 parlamentares que congregam em diferentes igrejas. O membro da bancada com maior destaque em 2015 é o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, parlamentar federal desde 2002 (atualmente em seu quarto mandato), ex-presidente da Telerj durante o Governo Collor e da Cehab-RJ no Governo Garotinho, e atualmente investigado por denúncias de corrupção e lavagem de dinheiro por envolvimento com a operação Lava Jato, e suspeito de ter realizado movimentações financeiras ilegais em contas bancárias na Suíça.

A Rede Record atualmente é a segunda maior rede de televisão aberta do Brasil, presente em 150 países. Sua grade possui cerca de cinco horas de programação da Universal, que também está presente em 22 horas da grade da CNT, e em outras emissoras abertas como Band, Rede TV!, Gazeta. Além disso, a Universal também possui sua própria emissora, a TV Universal, rádios e jornal.

A Rede Vida realizou debates, em parceria com a CNBB, com os candidatos à Presidência da República, em 2010 e 2014. Atualmente, além da Rede Vida, a Comunidade Canção Nova também possui um sistema de rádio e televisão. Os papas João Paulo II, Bento XVI e Francisco visitaram o Brasil, respectivamente nos anos de 1997, 2007 e 2013.

O primeiro disco do Padre Marcelo Rossi, Músicas Para Louvar O Senhor, foi lançado em 1998, e se transformaria no disco mais vendido da história do Brasil. Em 1999, Cid Moreira lançou sua primeira coleção de 24 discos narrando parte do Antigo Testamento, intitulado ‘Passagens Bíblicas’. Cid lançaria outras quatro coleções até 2009 e venderia mais de 30 milhões de discos.

Ainda em 1999, Renato Aragão participou de uma romaria até Aparecida do Norte para pagar uma promessa, dias antes do especial Criança Esperança. Católico devoto, em 1991 ele já tinha subido na mão do Cristo Redentor e beijado a mão da estátua no especial de 25 anos dos Trapalhões.

A Rede Globo realiza, desde 2011, o “Festival Promessas”, um especial de fim de ano com artistas de música gospel. Personagens evangélicos voltaram a participar de novelas da Globo, mas nunca com o protagonisto de Mariel em “Decadência”.

Gráfico da matéria “Pastores evangélicos pedem heroína à Globo”, publicado no caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo, em 06 de janeiro de 2013.

O Dia das Crianças voltou a ser mais uma feriado como outro qualquer, mesmo após as críticas dos Racionais MC’s e Facção Central.

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