Sobre Salgado, Rio Doce, Vale e a Samarco

Cleiton
6 min readNov 18, 2015

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Hoje o Jornal Nacional dedicou seis minutos para falar da cruzada de “um simples fotógrafo”. Sebastião Salgado surgiu nos últimos dias na imprensa em entrevistas como o homem que pode e quer ajudar a recuperar o Rio Doce após o maior desastre da história com barragens de rejeitos, que aconteceu após o rompimento de duas barragens da mineradora Samarco na cidade de Mariana, na tarde do dia 05 de novembro.

Sebastião Salgado falou, desde a última segunda feira, com o Estadão, El País, Jornal Nacional, entre outros.

A reportagem de Ernesto Paglia diz que,

“Salgado quer que a empresa responsável pelo desastre financie a recuperação das nascentes em todo o vale do Rio Doce.”

Para isso, a ideia é, segundo palavras do próprio Salgado,

“ A proposição é de se criar um fundo, um fundo imenso, que nos permita replantar todas as nascentes do Rio Doce. Reconstituindo a reserva legal e instalando um sistema de tratamento de esgoto e captação de lixo em toda a bacia. Nós podemos começar esse projeto imediatamente, e para isso nós necessitamos de um fundo considerável”

Este “fundo considerável”, idealizado por Salgado, viria da Samarco. E quem administraria? Qual seria o papel de Salgado nisto tudo? Aí que começam as questões.

Como a própria reportagem do Jornal Nacional nos informa, Sebastião Salgado é nascido na região do Vale do Rio Doce, na cidade mineira de Aimorés, “ mais de 500 quilômetros rio abaixo com relação à barragem que rompeu em Mariana”. De Aimorés, ganhou fama e reconhecimento depois de ir morar em Paris e fotografar todo o mundo, cobrindo desde um atentado contra o então presidente dos Estados Unidos Ronald Reagan, os extremos do mundo e as situações dos mineiros de Serra Pelada. Salgado lançou livros, filmes e exposições que rodaram o mundo.

Aimorés também é onde fica a sede do Instituto Terra, criado por Sebastião Salgado e sua mulher, Lélia Wanick. Ela é presidente e ele vice. Além deles, a ONG também conta em seu corpo de conselheiros com as ilustres presenças de, entre outros, Chico Buarque, os publicitários Gabriel Zellmeister e Washington Olivetto e o polêmico líder do MST João Pedro Stédile.

O Instituto Terra começou em 1998 em uma antiga fazenda da família de Salgado, onde o pastio do gado e a devastação ambiental deram lugar ao reflorestamento e restauração do ecossistema nativo. Com o sucesso do experimento, o programa foi se expandido pela região, através de projetos e parcerias. Além disso, a ONG também começou a receber aportes de instituições como o BNDES, Banco do Brasil, EDP, Fondation Prince Albert II de Monaco, Fondation Credit Agricole Suisse, Anne Fontaine Foundation, One Man One Tree, FUND’AGUA e Vale, esta última que possui papel vital na região.

A Vale começou atuando justamente na região do Vale do Rio Doce, de onde também surgiu o nome pelo qual era conhecida até a sua polêmica privatização, em maio 1997, quando foi adquirida — com financiamento subsidiado pelo BNDES — pelo Consórcio Brasil, presidido pela CSN (na figura de Benjamin Steinbruch), Previ (fundo de pensão do BB), Petros (fundo de pensão da Petrobrás), Funcef (fundo de pensão da CEF), Funcesp (fundo de pensão dos empregados da Cesp), Opportunity (de Daniel Dantas) e Nations Bank.

Nesta nova configuração, o Rio Doce saiu do nome, restando apenas a Vale, que desde então só cresceu em tamanho e atuação, se tornando a terceira maior mineradora no mundo. Apesar de toda esta expansão, a Vale ainda é forte na região do Rio Doce, onde mantinha operação conjunta com a anglo-australiana BHP Billiton através da mineradora Samarco. E foi justamente nesta operação que aconteceu o desastre em Mariana.

Antes mesmo do desastre de Mariana, a Vale já colecionava críticas nas áreas ambientais, sociais e trabalhistas, que a empresa tenta contrabalancear com ações e greenwashing nos locais onde atua e através de diversos parceiros.

Estes trabalhos são destacadas na parte Inciaitiva, no site da Vale, que, obviamente possui destaque no menu inical.

Uma das iniciativas da Vale vem justamente através da parceria com Sebastião Salgado. Desde 2008, a empresa patrocina o Projeto Gênesis, que virou livro e exposição que está rodando o mundo.

A Vale também doou 500 mil mudas para o Instituto Terra e, desde 2012, fechou uma parceria com a ONG para recuperar nascentes do Rio Doce com o programa Olhos D’Água.

Ainda existiu uma parceria em 2008 do Instituto Terra com a Samarco, no qual a mineradora firmou uma parceria para recuperação de 233 hectares de Mata Atlântica na Bacia do Rio Doce, além de compensações de emissões de gás carbônico em 2012 e 2013.

Com estes fatos prévios em mente e, apesar das boas intenções, é no mínimo delicada a relação de Salgado e do Instituto Terra com a Vale. Tanto que esta relação foi lembrada por vários usuários que utilizaram as páginas da ONG e de Salgado nas redes sociais para criticar a omissão de ambos com relação ao ocorrido.

O Instituto Terra só se pronunciou mais de uma semana depois do ocorrido, no dia 13 de novembro, e mesmo assim as críticas continuaram. A página de Salgado até agora não se pronunciou sobre o desastre. Mas, enquanto isso, Salgado diz na imprensa que conversou com a presidente Dilma e os governadores de Minas Gerais e Espírito Santo.

A mesma reportagem de seis minutos do Jornal Nacional sobre a iniciativa de Salgado não diz nada sobre a parceria do Instituto Terra com a Vale ou a Samarco, mas informa que

“A Vale afirmou que tomou conhecimento da criação do fundo proposto pelo fotógrafo Sebastião Salgado e que está disposta a apoiar, no que for possível, a recuperação do Rio Doce.”

Enquanto isso, na reportagem anterior a de Salgado, ficamos sabendo que

O Ministério Público Estadual de Minas Gerais e o Ministério Público Federal garantiram um acordo extrajudicial com a Samarco. Não é multa. A mineradora aceitou desembolsar R$ 1 bilhão para criar um fundo exclusivo para os danos ambientais. E é um valor inicial. “Ele é o primeiro ponto garantidor de que a sociedade terá a recuperação total desse imenso dano ambiental sofrido”, explica promotor de Justiça Carlos Eduardo Ferreira Pinto.

A Samarco tem nove dias para depositar metade do valor desse fundo numa conta que ela mesma vai administrar. Técnicos e promotores devem fiscalizar a aplicação desses recursos. Em relação às multas do Ibama, até agora a mineradora não pagou. Tem ainda 15 dias para recorrer. No total, foram cobrados da empresa R$ 1,25 bilhão.

Enquanto Salgado quer um fundo público-privado, a Samarco criou um fundo administrado por ela mesma. E, mesmo depois de todo o desastre, ele ainda acha que a empresa deve se manter na região:

A Vale, que é proprietária da metade da Samarco, é a maior empregadora dessa região. Se a empresa fechar será uma catástrofe na região, ela não pode encerrar as atividades.

Como se o maior desastre da história com barragens de rejeitos não fosse catástrofe suficiente.

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